Boogaloo Riot- Episódio 3 (Especial Lou Reed)

Estava a usar botas da tropa no dia em que o Lou Reed morreu.

A minha então namorada ligou-me do Porto para me contar, e achei que dar um pontapé na parede de cimento do Parque da Cidade seria uma forma eficaz de demonstrar ao universo o meu descontentamento com tamanha estupidez.

Passados três anos desse momento, já não uso botas da tropa e acho que dar pontapés em cenas é quase tão estúpido como ficar triste com a morte de gente que nunca conhecemos.

Mas para mim (e para muita gente no mundo), o Lou Reed é um desconhecido muito familiar. Passei mais horas a ouvir a voz do Lou do que a de algumas pessoas que hoje considero estar entre os melhores amigos que tenho.

Lembro-me de ser pequeno, muito pequeno mesmo, e cantar o coro da Walk On The Wild Side. Lembro-me de ser já não tão pequeno e passar as primeiras ressacas a ouvir a Sunday Morning. De ouvir religiosamente o Coney Island Baby com os meus primeiros amores, que quando acabaram me deram uma desculpa fantástica para ouvir o Berlin a noite toda e a Sunday Morning na manhã seguinte.

Este desconhecido recomendou-me a leitura de Allen Ginsber, William S. Burroughs e Marquês de Sade. Passou-me o bichinho das viagens, passei o final da puberdade a sonhar com Londres, Berlim e com a Manhattan dos anos 70.

Ensinou-me que o rock n roll, por ser livre de formas fechadas na sua génese, pode ser o que quisermos. Ensinou-me que a sexualidade e a identidade de género são plásticas e dinâmicas, não uma definição de caracter.

Mostrou-me que a beleza e a poesia não estão em exposições nem em galerias mas sim nas ruas escuras e nos bares manhosos, que viver até aos noventa sem histórias para contar é um desperdício quase tão grande como morrer drogado aos vinte.

Acima de tudo, o Lou definiu o rock n roll, glorificou-o e reinventou-o sem nunca ignorar as suas contradições.

Eu sei que esta coluna é sobre discos, mas acho que é uma coincidência demasiado grande este texto sair três anos depois da pessoa que mais me inspirou a ser artista e “jornalista” ter morrido para não escrever sobre isso.

E, para finalizar esta pseudo-homenagem fúnebre, deixo-vos com uma quadra do Lou:

“Marguerita Passion, I had to get her fixed/ She wasn’t well, she was getting sick/ Went to sell her soul, she wasn’t high/ She didn’t know the things she could buy.”

 Isto tem um nome, e chama-se: L-I-T-E-R-A-T-U-R-A