MEIO PALMO DE TESTA/ 3º EPISÓDIO

Miguel Pinto


“The rose is pruned to a perfect shape/ Perfect for whom, I wonder” é a citação que inicia Everyday is a Miracle, uma nova canção do mais recente álbum de David Byrne, American Utopia.

A frase que pode ser interpretada como a definição de subjetividade, pode sintetizar American Utopia, já que o disco tem vindo a receber críticas mistas. Porém, muito por detrás da qualidade sónica do disco está um conceito que Byrne veio a desenvolver ao longo dos anos e que culminou neste álbum: Reasons To be Cheerful, o conceito cujo nome veio duma canção de Ian Dury, tem o objetivo de trazer positividade às pessoas num tempo em que Trump é presidente ou que o Brexit ganhou a maioria das votações (apesar de segundo o próprio, os dois projetos terem sido concebidos antes destes acontecimentos.)

Com este conceito, que já tem um site, são enumeradas em vários setores tais como a cultura, saúde ou transportação, razões para sermos felizes. Curiosamente, Byrne mencionou Portugal como um exemplo na legalização de drogas, tendo em conta o número reduzido de overdoses que há por cá, mas isso é outra história.



Se formos haters, poderíamos interpretar esta iniciativa como arrogante ao ignorar os problemas do mundo, tentando fazer parecer que está na verdade tudo bem. Porém, há aqui algo mais puro: um combate ao pessimismo relutante e a prova que por vezes que nem tudo está tão mau quanto parece.

O novo álbum de Byrne acaba por refletir isso, tanto através de múltiplas metáforas, como de iniciativas de promoção do disco, onde uma escola de Jazz de Detroit se apoderou duma faixa do álbum para lhe dar tanto voz, como um novo significado. Uma canção onde o otimismo adquire um significado maior é a acima citada Everyday is a Miracle, que consegue pôr o mais decidido suicida num clima de boa disposição. É daquelas canções ridiculamente bonitas, mas irónica no quão inspiradora na realidade acaba por ser. Outra composição magistral é Everybody’s Coming To My House (porque é que todas as canções de Byrne são sobre casas?), uma quase metacanção, que acaba por simbolizar o nosso apoderio da música, pela forma da casa do sujeito, e nós que não queremos voltar para a nossa. Porém, para o final, a faixa adquire um significado mais profundo, uma reflexão sobre a vida (“We're only tourists in this life/Only tourists but the view is nice”), num jeito de todos vamos voltar para o mesmo lugar, aproveitemos enquanto dura.



American Utopia é um álbum que apesar de vir dum compositor mundialmente (re)conhecido nos pode até passar ao lado, com a imprensa a pôr o foco nos novos artistas e a ignorar os antigos, em busca de relevância (pode ser que seja só impressão minha).

Estamos perante a maior contradição. American Utopia pode provavelmente ser o álbum mais relevante do ano, uma chamada de atenção para a nossa sociedade e para a forma como vivemos, porém a constante procura de novos artistas, pela imprensa (o que não é claramente uma coisa má) muitas vezes acaba por ofuscar os que supostamente "já deram tudo o que havia a dar", numa espécie de preconceito estranho. Isto poderia ser só mania de embirrar, se não se tivesse visto grandes álbuns como o mais recente de Jesus and Mary Chain, Damage and Joy, ou os múltiplos álbuns que vem sendo lançados dos Brian Jonestown Massacre a serem praticamente ignorados. Ainda por cima Byrne, que após o fim dos Talking Heads não cedeu ao facilitismo, tentando sempre elevar a sua arte ao melhor possível. Muitas vezes a dita relevância acaba por aparecer deturpada.

Na apresentação de Reasons To Be Cheerful, Byrne mostrou-se cético sobre se a arte é mesmo capaz de alterar a mentalidade das pessoas, tentando porém pela música que faz que isso aconteça: com American Utopia, e Reasons to be Cheerful em reforço, se nos mostrarmos disponíveis intelectualmente e o ouvirmos com a devida atenção, não duvidem que acontecerá.


(A review mais detalhada a American Utopia está já presente nas Críticas do Indieota).