Por muitos anos, décadas até, bandas como The Jesus & Mary Chain, Loop ou mesmo OS My Bloody Valentine já não são vistos como os inventores máximos deste género que até Kurt Cobain influenciou a dado ponto. São estes irlandeses chamados Cocteau Twins que em 1984 fizeram história.
"Treasure" é um dos discos mais influentes na história do rock e da pop contemporânea. Mas para podermos elaborar tal frase, temos de olhar para o que aconteceu na música quarenta anos depois do seu lançamento, mesmo que podendo fazer pequenos picos de acontecimentos duradouros entre a década de 80. Começando pela própria editora, a 4AD, que tinha uma visão muito inebriante daquilo que a pop devia ser, algo eclética mas atmosférica... As primeiras bandas constituem um catálogo arrepiador de majestosa conceção laboral da pop, e tudo de uma energia e força muito natural e pouco fermentada e era assim que as bandas pop da no-wave escapam ao exorcismo da new-wave, que era viciante e motivacional, mas começava já a ter indícios de chart-pop o que escalava alguns temas recorrentes de sexo, party... Mesmo que algumas bandas de pós-punk naquela altura tivessem uma visão diferente desse modus operandi, discípulos como Talking Heads eram tudo aquilo que as bandas rock de new wave deviam ser, inteligentes, sagazes, dançáveis sem serem tacky... E fazendo uma pausa de todos esses anos loucos da new wave, aparecem editoras como estas, britânicas, trazendo um som deveras alternativo para o radar e para toda uma consciência pop secular. E se formos pensar duas vezes sobre isto, as Cocteau Twins têm de ser uma das primeiras bandas de sempre a mexer com território dream pop ou mesmo shoegaze, mesmo que o crédito destes seja muitas vezes atribuído a grupos como por exemplo The Velvet Underground, que praticamente inventaram o termo no homónimo de 1966 "The Velvet Underground & Nico" com o tema "Sunday Morning", onde vemos o protagonista Reed sussurrar frases esbeltas para um microfone: "Sunday Morning, praise the dawning"... E não foi apenas esta sonoridade que Reed ou Cale inventavam quando estavam em estúdio, mas para isso, temos de simplesmente passar o artigo todo a falar sobre isso e deixaríamos Cocteau Twins para segundo plano, o que é deveras impossível fazê-lo, sendo que se The Velvet Underground foi o berço para a dream-pop e para a noise-rock, e se bandas como Sonic Youth tiveram um papel fundamental em trazer esse facto para cima da mesa e ajudar ainda mais a popularizar este género e esta banda nova-iorquina para o seu merecedio estrelato, então uma banda como Cocteau Twins é absolutamente essencial para tingir ainda mais todo este complexo modo de produzir, gravar e escrever canções pop. Temos simplesmente de continuar a fazer menção ao produtor da editora, Ivo, que é sem dúvida nenhuma um dos responsáveis por esta sonoridade muito particular. Os vocais de Fraser estavam absolutamente camuflados em lasanhas de reverb, tão condensadas que quase pareciam saídas de uma tigela de ar quente com vapor fumegante. A fumegar saem versos absolutamente angelicais, redundantes e quasi-cépticos muito propícios daquela era.
Aliás, a música não era política, era quase toda uma epopeia extraordinária de pensamentos diurnos para uma pista de dança vazia, e que com o acumular de frases, ia-se enchendo cada vez mais e fazendo cada vez mais sentido estar lá. Era como se fosse uma espécie de mini-tornado que tornava-se maior com o escoar de cada verso cantado por Elizabeth, que tornaria-se numa das capitães-mãe deste fabuloso descobrimento para a pop, não só do ponto de vista estilístico mas do ponto de vista arquitetónico. Nenhuma banda tinha uma estrutura de canções pop tão sharpística como estes Cocteau Twins. Mesmo se formos olhar para as bandas de rock-pop da altura, mesmo as mais edgy da new-wave... Culture Club, Yes, A-Ha... Poucas bandas daquela altura tinham uma forma magnética de escrever, e se formos agora para o outro lado da costa, vamos encontrar bandas sedentas deste muito particular culto de música e que agora desejam marcar a história de uma forma muito especial e seletiva. Temos de começar esta jornada do shoegaze falando de The Jesus & Mary Chain, que são apelidados por muitos como os pais da shoegaze moderna, embora voltem bandas como Cocteau Twins para dizer o contrário. Temas como "Persephone" são os primeiros dos primeiros vestígios shoegaze na história do shoegaze, e dizer isto é absolutamente necessário. Os vocais absolutamente escorregadios de Elisabeth Frazer e as guitarras semi-funk de Guthrie ditam o rumo para bandas como My Bloody Valentine regressarem e redefinirem por completo o conceito de shoegaze. Com "Isn't Anything", contudo, temas como "Sueisfine" ou o próprio "Soft as Snow" são absolutos monkey-see-monkey-do's de canções como estas (“Persephone”), onde mostra-se aqui que Elizabeth Fraser não deseja apenas que a sua banda seja a fita do filme, deseja sim que este seja um filme noir inesquecível. É mundano, gótico, puro... "Pandora (For Cindy)" teletransporta-nos de volta para um género absolutamente novo nos 80's, a Ethereal Wave, que influenciaria mais tarde a Lo-Fi. Elizabeth é mais ternurenta que sempre, evocando sempre as suas próprias odes ao que estava habituada a ouvir, como Siouxsie and the Banshees (influências) e dando a estas um twist refrescante. A produção é hazy, é slow-tempo, e é ao mesmo tempo dançável como se de um baile de pop clássico se tratasse, é um swing lento de um romanticismo fora de série, é um nível elevadíssimo de estrutura-pop, com uma muito versátil forma de compor os arranjos de synth, que são quasi-orgãos de cetim, daqueles que apenas este tipo de bandas poderia lembrar-se de incluir numa canção pop de efeitos moduladores. Se formos de volta a esse ano, praticamente ninguém saia com um som destes, mesmo que tentássemos puramente falando olhar para The Jesus & Mary Chain como estes possuidores de toque de midas no que à arte de escrever canções pop ruidosas e envoltas em nuvens brancas. O problema aqui não existe, existe sim duas formas de vermos o shoegaze e de, após cuidada análise, darmos o tributo a Cocteau Twins como a primeira banda de shoegaze de sempre. Ora, verdade seja dita que quando apareceu "Isn't Anything", My Bloody Valentine tornou-se nas mais famosas das bandas deste estilo muito celebrado do rock, até porque a NME que na altura era (e talvez ainda seja) a ordem e referência do jornalismo musical, ter assumido que estes lads da Irlanda e de Londres apenas sentiam prazer em tocar se estivessem a olhar para os sapatos durante os concertos e performances ruidosas, ou se muito possivelmente apenas tivessem muito concentrados em olhar para os vários pedais que manipulavam este som catártico. Depois, é preciso olhar para esta banda que até tem um crédito importante na própria constituição do termo "shoegaze", Loop, que surgiam com um muito pouquíssimo esquecível "Heaven's End", (1987) que muito perto da linha de meta para My Bloody Valentine lançarem esse vital "Isn't Anything", lançar também essa dúvida sobre quem era ou não pioneiro do shoegaze. Se "Isn't Anything" é uma demonstração etérea de prazer sexual das guitarras e da simbiose pura entre estas e um bom par de vocais amados pela velha certeza do masculino e do feminino, então "Heaven's End" é o precípicio de tudo isso, mas faz ainda mais juz ao póst-punk enérgico e altamente caótico que bandas como Sonic Youth já se habituavam a fazer e nomeadamente com o deslumbrante "Daydream Nation", que sucedia a "Sister" e outros lançamentos já muito conturbados do rock, e nada jangly de todo, e até que se formos olhar para "Heaven's End" como um primeiro grito de certeza, é que Loop não se considerava de todo uma banda de shoegaze, e nem podia considerar-se nada, até sair este primeiro de dois volumes essenciais de My Bloody Valentine editados entre 1988-1991, para depois suceder ao absoluto clássico "Loveless", que iria referenciar o género e levá-lo até caminhos pop mainstream que seriam impossíveis com apenas "Heaven's End" ou com apenas e só "Treasure", e essa é a absurda realidade. Mas, contudo, Cocteau Twins seriam ainda mais referenciados como a banda definidora de um género, quando esta particular editora, mais ao passar do encostar da década de 80 para 90, começa mesmo a editar bandas rock reminiscentes desse estilo mais new wave alternativo. O que agora até lhe podíamos chamar de pré-grunge, eu preferia mesmo e só chamar-lhe de indie rock. Até porque estas bandas não eram de todo desconstrutivas da shoegaze que era o género musical mais ouvido do alternativo nesta fase. Se "Treasure" foi um pequeno hit e tornaria-se depois numa jóia do rock contemporâneo, teremos de atribuir alguns créditos a Pixies e depois mais tarde a Lush. Pixies, americanos, acabaram por tornar-se favoritos da 4AD com os lançamentos de "Doolittle" e antes, "Surfer Rosa", o que aumentava ainda mais o nível e a classe deste catálogo, para poder atribuir ainda mais crédito a Cocteau Twins por não serem agora apenas inventores do shoegaze, mas muito provavelmente do género rock alternativo. Se formos ao mundo do rock alternativo, poucas bandas antes de Cocteau Twins seriam pouco capazes de elaborar um plano artístico ao rock, sem qualquer pretensão de ser vendido ou comercial, apenas tendo um forte apelo de design artístico e uma profunda verdade estética que roça até ao fantasmagóricos ícones da moda, e até se formos olhar mais tarde, não seria possível ouvirmos coisas como Grimes, ou mesmo 30 Seconds To Mars se não elevássemos Cocteau Twins a este pedestal de inovadores. Depois, até podemos ir mais profundamente ao catálogo da 4AD, e apontar a esse indie rock como catalisador principal de bandas como Lush, capazes de trazer este swag índico de Cocteau Twins para as guitarras de party-rock. Miki Berenyi era também especialista em gravar-se desta forma, e tendo quase o mesmo produtor a assegurar esta inigualdade de arranjo vocal, os discos de Lush saiam quase sempre como se tirados de um absoluto sonho de fumo e de esperança cor-de-rosa de conquistar o mundo com o rock. Mesmo que a música de Cocteau Twins fosse mais gótica, o profundo sentimento de mudar o mundo estava assente em temas como "Otterley" ou mesmo em "Cicely", com Fraser dizendo para si mesma "The King must park his soul", havendo até rumores destes serem direcionados para o próprio Ivo. Para segmentar ainda mais este lançamento de "Treasure", não esquecer que antes deste disco, não haviam muitas vocalistas femininas a assegurarem um caminho no alternativo. Tínhamos vocalistas femininas que eram absolutas mestres da new-wave, e isso era óbvio até no punk que se vivia em Nova iorque, e aí podemos disparatar Patti Smith, a maior compositora da sua altura, Kate Pierson das B-52's, uma banda que literalmente tornaria-se num marco para a world music e para a dance-pop music e que poderia ou não influenciar muito aquilo que Madonna já pretendia fazer nos seus versos Teen Pop, e até podemos ir um bocadito mais profundos na piscina se não nos esquecermos de Debbie das Blondie, que parece ser esta figura primordial para um rock mais sério, mais requintado e que agora podemos chamar-lhe de rock alternativo em comparação aos chart-toppers da altura. Sei lá... Pink Floyd ou Dire Straits ou os hérois Bon Jovi ou essas coisas todas mais chart-topping, e inclusive se olharmos para Bowie como o sr por trás de uma ordem de rockers alternos, podemos até voltar a esta era da 4AD e percevê-la como uma grande era para a música, sendo que a alternativa pop era agora a mais desejada entre os tops de colégio e assim podia abrir mão para outros estilos colegiais aparecerem, mais presumidamente a jangle pop, que daria mote para a Brit pop e que, mais tarde, com a chegada do grunge, seria o próprio carrasco da shoegaze, que enquanto cena que se celebrava a si mesma, era incapaz de vender ou de obter qualquer tipo de estabilidade monetária dentro do propósito de consumir música. Ou não.
Bandas como My Bloody Valentine entraram nos 90's como a banda mais cara do rock alternativo, tendo reportadamente levado a sua editora Creation à falência após Loveless ter custado cerca de 250 mil libras. Em Portugal, o disco de Chinaskee "Bochechas" é reportadamente um dos discos de rock alternativo portugueses mais caros de sempre, tendo custado cerca de 22 mil euros a ser produzido e gravado na Namouche. Bandas como The Smiths apoderaram-se do sucesso da shoegaze para contraporem a sua própria moeda de troca e acabam por orginar o surgimento de Madchester, que era mais uma resposta operária ao excesso e à popularidade desta banda que era considerada como os novos Beatles alternativos. Assim, bandas como Stone Roses não tiveram problemas nenhuns em chegar ao mercado e assumirem-se como as novas promessas do arena-rock, e com titulos como "I Wanna Be Adored", a NME não teve problemas em derreter-se e chamar a este homónimo de 1989 como "Melhor Disco Britânico de Sempre", tornando ainda mais fácil a chegada de Oasis ou Blur, que mesmo que pudessem ser a própria ressureição destes estilos que menciono (Jangle, Shoegaze e Madchester) num só, a Brit Pop, tornariam ainda mais difícil para que o Shoegaze continuasse a ser aquilo que pretendia ser e tornou-se, numa revolução do rock, e acabou por contribuir para a sua dissolução já perto de 1996, o que acaba por comprovar não só Cocteau Twins como os inventores da shoegaze em 1984 como a última banda de shoegaze em atividade, com o aparecimento do agora novelty "Heaven or Las Vegas", que encerra um ciclo vitorioso de hits clássicos para o indie, underground, e para o próprio alternativo. Depois disso, poucas bandas atreveram-se a tocar neste território, com a 4AD agora cada vez mais em negação e a revoltar o seu próprio catálogo para algo mais radio-intuitivo, não friendly. Temas como "Ivo" são hits da rádio alternativa, e muitos destes passam ainda na rádio mainstream, tendo influenciado nomes como Miley Cyrus que acabara por décadas mais tarde surgir com um disco colaborativo com os The Flaming Lips, que são vistos por muitos como a cola que liga o shoegaze ao psicadélico, e que o torna num dos estilos mais apetetecidos do indie rock, tendo originado outras bandas duradouras como Tame Impala, que são ícones e que vão buscar muitas dessas influências para inspirar outros artistas, como Melody's Echo Chamber, que não seria de todo o hit que foi com "Melody's Echo Chamber" se não fosse Cocteau Twins a ditar o rumo pop para este género de música. Depois, em Portugal, apenas uma cantora foi capaz de trazer de forma muito precisa, toda essa semântica pop de calor dreamy, e essa cantora chama-se Sallim. A sua estreia pela Cafetra Records, "Isula", é um poema ao dream-pop, com Sallim a evocar constantemente odes Elizabeth-Fraser esque, e trazendo uma chamberness suculenta de música atmosférica e etérea, sendo portanto um monumento a todo um estilo. Isto foi em 2016, e alguns meses antes ou na mesma altura, um cantor chamado Primeira Dama foi capaz de fazer o mesmo, de uma forma ainda mais esbelta, dramática e arrojada. O disco "Histórias Por Contar" traz muita dessa ingenuidade que é absolutamente necessária para se fazer música de uma grandeza espiritual como esta, é preciso ser-se como uma criança para sonhar com sonhos destes na música, que nunca foi e será uma história, mas apenas isso mesmo, um sonho. No shoegaze, um novo género musical chamado nu-gaze começa a trazer bandas que se inspiram por estas, dos anos 80, só que nos anos 00. Embora Grimes possa ser um dos casos de sucesso imediato, e ignorarmos por completo Björk que é um caso à parte para a art-pop e até Lana Del Rey, que é uma somatória de ambas para o estilo pop recorrente, então My Bloody Valentine após esse interregno de quase 22 anos, já se apercebiam da existência de mas sabendo trazer esse toque de pica rock que Sonic Youth davam às suas guitarras e esse toque de dreamyness que Cocteau Twins inventaram e que My Bloody Valentine aperfeiçoaram. Depois, as canadianas No Joy eram mais catárticas, mais absurdas de um ponto de vista sónico, mas traziam essa dreamyness para cima da mesa, sem tirar nem pôr. Mais bandas de nu-gaze foram surgindo com o passar dos anos, e é difícil não mencionar por exemplo Dum Dum Girls a um ponto de vista gaze vacuum-pop/rock, ou The Crocodiles que também saboreavam muito esse prato forte que Jesus and Mary Chain nos deixam.
Agora, nos anos 20 desta segunda década do milénio 2000, acontece que estas bandas informadas pelo alternativo de Smashing Pumpkins, Deftones, ou das próprias bandas de shoegaze e de pós-punk novas como Diiv, surgem como percursoras deste eterno movimento romântico do rock ao qual chamaos de shoegaze e dream/pop. Internacionalmente, bandas como The Neverminds (Canadá) são excelentes exemplos de como retrazer uma era hoje.