31 Jan
31Jan

Quando se ouve Flor Girino ao vivo, e quando entramos numa sala com algumas pessoas na mesa e assim que os instrumentos começam, uma sala tão pequena como o Bus de repente torna-se ainda mais micro, apercebemo-nos estar perante um fenómeno. Em 2005, havia uma banda no Cais Sodré que mantendo um espirito jovial e 100% alternativo, evocava uma cornucópia de estilos e géneros e noções sonoras que só pareciam ser possíveis no outro lado do oceano. Noise-rock, shoegaze, ruído... Agressão pacifica... essa banda chama(va)-se Linda Martini. A mesma energia sónica, transmitida 20 anos depois, numa Lisboa profundamente enlutada por manifestações, crises politicas, falta de tudo... E Flor Girino aparece como uma semente de esperança, trazendo de volta uma possibilidade de trazer uma era dourada do rock onde o alternativo e o experimental de mãos dadas conseguem e têm potencial de chegar a um público mais amplo e mais vasto, fazendo lembrar por exemplo Pere Ubu que até teve singles nos tops nacionais. E Flor Girino são um doloroso grito de realidade.



Uma doce, acrílica, sincera, mundana, paciente, destemida, ensaiada, mesclada, enraizada, cúmplice de tudo isso que são os princípios do rock e de muito mais. Bandas como Flor Girino inclusive provocam a artificialidade dos tempos e procuram um pouco de satisfação orgânica. Um crime organizado e bem possivelmente até legal. De Talking Heads a Television, de Linda Martini a Heróis do Mar, sente-se uma garageira yet melódica literatura musical, uma capacidade sobrenatural de songcrafting... Inclusive, bandas como estas que geralmente evitam as convenções mais estilisticamente pop conseguem emergir-se como autênticas tunas de correspondência com o público, numa muito natural e igualmente correspondida... Uma energia punk num corpo rock, com pés molhados pop e uma sedução quasi-blues... ainda assim muito psicadélicos para o seu tempo e muito cientes dessa entrosão.



Na bateria, toda uma herança de femme-fatales como as Kim's (Gordon e Deal), Miki Beranyi, Tina Weimouth... O atrevimento de Mati em ser o mais barulhente de todos, o mais estático contudo. É poético e voraz. É progressivo, sujo. O técnico de som preocupado em manter o som acima ou abaixo dos decibéis permitidos para não soar ora muito alto na mix, para não espantar os vizinhos, ora muito baixo para não espantar os espetadores. Os vários wah-wahs e fuzz nas guitarras re-apontam Flor Girino como uma daquelas bandas que vão impedir-nos de sentir qualquer tipo de saudade pelo grunge, ou por alguns dos estilos musicais acima referidos. Enquanto tudo isto acontece, parece como uma novela que agora retorna ao início e onde para podermos acompanhar o enredo temos de voltar até Lisboa de anos 70. Não é por mal dizer isto mas é como se bandas como estas ficassem com uma herança deixada por grandes como Veloso, Xutos, UHF, D’Água... pegassem em todas essas vaidades rock e não quisessem saber muito delas. O mais importante não parece ser tudo isso quando todos estes cinco elementos pegam nos instrumentos. Há sim uma eletricidade que é inegável, e tentar negá-lo poderá ser um erro fatal até para os ouvidos mais apurados da franquia. Por isso, torna-se útil ligar os dados e fazer as ligações corretas e aí delinear conclusões que nesta altura do campeonato podem ou não significar triunfo: a importância que bandas como Flor Girino podem vir a ter no resgatamento do rock como o sempre conhecemos sendo que é inegável que as bandas rock parecem estar em extinção. Uma coisa é certa, alguma coisa espera-se acontecer nos próximos tempos, ou alguém oferece um contrato discográfico a esta banda, um daqueles como devem de ser feitos para que esta banda possa ir para um estúdio gravar um longa duração, ou podemos simplesmente fazer como tudo que temos feito e fingir que este muito sério problema, que para variar é um muito agradável, não existe. Independentemente de todo este ensaio, nada pode apagar o que aconteceu no Bus que foi um autêntico exercício de entusiasmo, daqueles que já não vivíamos há algum tempo. Algumas bandas muito recentes como Pista, Panado, ou agora Humana Taranja despertam-nos todas estas sensações que são na verdade querelas de pensamentos que temos numa tarde de labor onde parece mesmo que o mundo inteiro se uniu para se travar. Como se fosse uma tentativa de percebermos onde está esta satisfação que nos parece escorregar por entre os dedos num mundo estranho? Neste muito real caso, essa estava aqui mesmo no Bus Paragem Cultural e chama-se Flor Girino. Uma banda com apenas três singles mas com uma inteira bagagem de boas influências, aqui captadas eximiamente, e que com elas carregam ainda um testamento de bandas que em 2024 podem fazer já 50 anos de carreira, para uma banda com 3/4 meses de serviço. A isto é que eu chamo uma grupo especial! E ainda para mais, antes de um disco de estreia que é oficialmente um dos títulos mais esperados do ano e que vão possivelmente confirmar Flor Girino como uma das bandas urgentes, daquelas com fita laranja fluorescente e que não precisam de triagem.




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