MEIO PALMO DE TESTA / 1º EPISÓDIO


Intro.

Estávamos em 1741 quando, segundo a “lenda” (biografia pouco verosímil), o Conde Hermann Karl von Keyserling, embaixador da Rússia na corte da Saxónia, expressou a Bach o seu desejo de ter algumas obras de caráter suave e algo vivo para que o seu cravista, Johann Goldberg, as pudesse executar nas suas frequentes noites de insónia, provacadas por constantes sezões, de modo a dar-lhe algum reconforto, e sobretudo, sono. Bach correspondeu aos desejos do conde, criando as "Variações de Goldberg", que caíram tanto no apreço do conde que este pedia ao seu cravista para as tocar sempre que perspetivava uma noite de insónia.  

Quase 2 séculos depois podíamos ter-nos deparado com esta composição, reproduzida a meia velocidade, num all night concert de R.I.P Hayman ou até com a menção da própria lenda num livrete de créditos de "Sleep", álbum de Max Richter. O que é que estes dois compositores têm em comum? São dois pilares fundamentais da denominada sleep music, conceito popularizado nos anos 80 por Robert Rich, mas que surgiu em 1975, pelas mãos de Hayman, um provocador nato.




A irreverência de Hayman.

A sleep music é naturalmente um género de música focado no sono, sendo inerente a sua característica cientifica, tanto numa perspetiva mais prática, no combate de insónias ou nem que seja no alcance dum estado de espírito mais sereno, como num propósito mais artístico ou criativo, mantendo porém a cientificidade, na tentativa de alcance da essência dos sonhos, do sono, e de diferentes estados de consciência.

É por isso, uma música muito lenta, minimalista, poderíamos até dizer um subgénero da drone music. Daí, terem sido poucos os artistas que se atreveram a explorá-la.

O primeiro foi R.I.P Hayman, pertencente ao movimento Fluxus, aluno de John Cage, e principalmente caracterizado pela sua especificação nas mais diversas áreas (foi desde capitão marítimo a engenheiro de som), e diríamos até o fundador dos sleep concerts, em 1975, que levaram todo o conceito de sleep music a um outro nível. Nestes concertos, o objetivo da audiência, contrariamente a um concerto normal, era dormir, sendo a duração do concerto duma noite inteira (8 horas, normalmente). 

Audiência num concerto de Hayman em 1988.

No caso de Hayman, o propósito de colocar uma audiência a dormir era, algo ambiciosamente, alcançar o som dos sonhos, isto pela contração do músculo do tímpano, fenómeno proveniente do estado REM do sono, por ação do som. Para adormecer a audiência, Hayman recorria não só à música (onde reproduzia desde as "Variações de Goldberg" em média velocidade até rituais xamânicos de tribos da Malásia, como ainda tocava linhas de harpa ou de flauta) mas também ao conforto, proporcionando chá de camomila e até aromatizando o espaço com essência de lavanda, para melhor relaxamento. No final do “espetáculo”, inquiria a audiência sobre o que tinham sentido ou sonhado. Contrariamente aos compositores do género que o precederam, Hayman apresentava estes “rituais” num tom algo cómico (veja-se só o título da sua composição "Snore Sonata" ou o seguinte vídeo de introdução a um sleep concert seu), provavelmente herdado do absurdismo neo dadaísta do movimento em que se inseriu.


Estas experiências levadas a cabo por Hayman resultaram em "Dreamsound", um álbum editado apenas em 1987, e que segundo o próprio, encoraja o relaxamento e o sono confortável, como não poderia deixar de ser.


Robert Rich (não é preciso dizer mais nada).

Alguns anos mais tarde em 1982 enquanto Hayman se continuava a intrigar com os propósitos mais irrealistas (ou ambiciosos) da sleep music, Robert Rich, um caloiro na universidade de Stanford, levava-o como influência, assim como a John Cage ou Terry Riley por exemplo, popularizando o conceito de sleep concerts. A sleep music de Rich não queria proporcionar uma boa noite de sono tal como com Hayman, antes pelo contrário, desejava que a audiência estivesse no limbo exato entre o desperto e o adormecido, de modo a alcançar um estado alterado de consciência, a hipnagogia. O seu primeiro álbum, "Sunyata", focava o ambiente destes concertos que o tornaram (re)conhecido logo à partida, e editado em 1982, acabou por sair ainda 5 anos mais cedo que o "Dreamsound" de Hayman (daí se costumar dizer que foi Rich o pioneiro da sleep music).

Quase 20 anos mais tarde veio o climax de Rich com "Somnium" em 2001, a sua magnum opus e o álbum essencial da sleep music, com 7 horas certíssimas (nem mais nem menos segundo), assim com a duração de uma noite de sono normal, e que tinha o propósito de mais uma vez potenciar a experiência de acesso a diferentes estados de consciência, num drone tão etéreo quanto tenso. O próprio Rich referiu que o que tenta fazer ao compor música é aproximar-se o mais possível do silêncio, daí aconselhar a escuta do álbum com o volume muito baixo, de modo a criar apenas um ambiente transigível onde se possa mergulhar.


Entrevista - 10 perguntas a Robert Rich (!!!)

Robert Rich, lenda da música experimental americana e influenciador de grande parte da música ambiente, IDM e new age que se faz hoje em dia, falou com o Indieota. Sim, não estamos a brincar.

O entrevistador, tradutor da entrevista e criador desta rubrica fui eu, Miguel Pinto.

 

MP: Primeiro que nada, parabéns, sei que vai dar um sleep concert no dia 23 de Fevereiro em São Francisco e que vai ser o primeiro ao vivo na sua cidade natal em mais de 30 anos! Como é que se sente?

RR: Obrigado. Eu devia clarificar que se vai tratar do meu primeiro sleep concert em 30 anos, com uma audiência ao vivo. Eu costumo dar concertos de duração normal em São Francisco por volta de uma vez por ano. Realizei um sleep concert via radio em 1996, mas o último na Bay Area com uma audiência foi nos anos 80. Por isso sim sinto que foi há imenso tempo. Enquanto estes concertos de 8 horas não são tudo o que eu faço, deram-me uma grande publicidade quando estava a começar a fazer musica. Porém, são verdadeiramente cansativos e mexem com a minha agenda pelo menos por 2 semanas, por isso tento não os realizar frequentemente. Penso neles como um ritual especial, uma volta a um lugar inicial de som puro. É necessário muito foco e por isso devem ser eventos raros.


MP: Começou a construir sintetizadores logo aos 13 anos. Como é que a ética D.I.Y influenciou o seu trabalho?

RR: Tenho que dizer que a abordagem D.I.Y ainda é a base de tudo o que faço. Começou não só por necessidade – não tinha dinheiro suficiente para comprar os sintetizadores que queria – mas também porque o que queria dizer não ia numa direção mainstream. Os artistas que me influenciaram eram preferencialmente underground. Eles próprios eram por vezes D.I.Y. Hoje em dia, embora não solde e construa coisas tanto quanto costumava, estou ainda muito envolvido no desenvolvimento de novos instrumentos e tecnologias. As competências que adquiri ao fazer coisas do zero ajudaram-me a manter uma carreira a diferentes níveis da música eletrónica. Porém, mais que os instrumentos, sempre me encarreguei da minha carreira, lançando os meus próprios álbuns, tratando do agendamento dos meus concertos e da divulgação da minha música aos ouvintes. Penso que esta é a única forma de obter sucesso ao fazer arte que não tem apelo comercial, porque não há o dinheiro necessário para pagar a um grupo de pessoas como alguns artistas fazem. Isto não é para dizer que não obtenho ajuda. A minha esposa Dixie já me auxiliou com encomendas de CDs e ajudou com a expedição. Eu contrato pessoas para fazerem tarefas fora das minhas habilidades, como por exemplo tratarem do design do meu website, artwork de CDs, aconselhamentos jurídicos, coisas do género.


MP: A sleep music que cria é obviamente muito influenciada pela música drone, e é sobretudo minimalista. O que é que vê no minimalismo e na calma que o fascina?

RR: Sempre estive interessado nas formas em que a nossa mente se envolve com o ambiente através dos sentidos, e com a forma que a atenção muda o mundo que percecionamos. Os nossos sentidos são um sistema feedforward em que nós temos que nos focar em algo para o entendermos completamente. Eu adoro a arte que envolve o participante (espectador ou ouvinte), que oferece um convite para percecionar o mundo de novas formas. Quando nos envolvemos com alguma coisa que desperta as nossas perceções, aprendemos algo novo sobre nós e sobre o nosso universo. A arte minimalista faz isto de um modo que se adequa a mim, ao refinar o nosso sentido de tempo e convidando-nos a ver e ouvir mais atentamente. Atrai-me mais um sussurro que um grito, em parte porque penso que o mundo se tem tornado demasiado volumoso e o constante e frenético fluxo de informação, tende a tornar-nos insensíveis, causando-nos a desligar e impedindo as nossas perceções.


MP: É interessante ter dito que a sleep music que faz não é para as pessoas adormecerem, tal como acontece com o Sleep de Max Richter por exemplo, mas para alcançar a hipnagogia. Pode explicar-nos o que quer dar às pessoas ao alcançarem esse estado?

RR: Não posso falar pelas intenções do Richter, mas parece-me uma experiência muito diferente ter um conjunto de cordas a tocar toda a noite. Eu trato de evitar a repetição e a melodia nos meus sleep concerts e focar-me apenas na textura sónica da sala. A ideia (figuradamente falando) é remover sonicamente as paredes da sala, criando um vazio inconstante e difuso que coloca os ouvintes num ambiente pessoal. O som é muito calmo, apenas alto o suficiente para que notes quando estás acordado enquanto viajas no espaço que foi criado. Eu comparo o som aos exploradores de cavernas, desenrolando uma linha no caminho por trás deles para manterem uma conexão com o mundo. O som é como essa linha, um lembrete para prestar atenção ao espaço invulgar que vive sempre dentro de nós. Nos vários estados do sono e mesmo nos estados de consciência alterados quando estamos acordados, as experiências hipnóticas do 1º estádio do sono são o que melhor se relaciona com esta ideia. Estes são pensamentos não lineares e imagens que muitas vezes nos esquecemos ao passarmos para o sono profundo. São normalmente menos organizados que os sonhos, mas podem oferecer passagens para as nossas perceções. Com o ambiente ativo do sleep concert e com a interferência das pessoas na audiência, torna-se mais fácil entrar e sair destes estados, como uma pedra saltitando na superfície de um lago profundo.


MP: Nos primeiros sleep concerts que deu qual foi a opinião geral da audiência no final? Havia pessoas a ir embora durante a noite ou toda a gente achou fantástico?

RR: Dependia muito do ambiente. Geralmente, as pessoas ficavam o concerto inteiro. Era um pouco um compromisso ficar a noite inteira e certamente inconveniente enrolar o saco cama e ir embora duma audiência tão quieta nas primeiras horas da manhã. Talvez tenha criado uma audiência cativa? Eu penso que as experiências dos concertos são muito pessoais e toda a gente traz as suas expectativas na bagagem para um evento como este. Algumas pessoas expressam sensações e experiências profundas, outros podem adormecer profundamente e não sentirem nada de especial. Nós experienciamos o que carregamos connosco.

  

MP: Aqui em Portugal, os músicos experimentais não recebem muito crédito pelos seus trabalhos, já que a sua música é vista como inacessível. Como vive nos EUA, quão diferentes são as coisas aí?

RR: É igual. A música experimental raramente consegue muita atenção, especialmente nas redes de comunicação mainstream. Alguns artistas atingem o sucesso através do choque, violência, abertura sexual ou qualquer outra ação ruidosa; mas quando a arte é sobre ouvir e estar mais calmo, é difícil ser notado num mundo tão barulhento e com uma noção tão atípica.


MP: Sente algum tipo de pressão, hoje em dia, para que os artistas sejam socialmente conscientes ou tenham um significado mais profundo por detrás do seu trabalho para que este tenha uma maior aclamação ou seja considerado relevante?

RR: Talvez. Eu penso que se trata duma decisão inteiramente pessoal feita pelo artista e pela audiência em como interpretar a ação artística. Por exemplo, eu quero fazer arte que soe intemporal, por isso evito falar de políticas de curto prazo na minha música embora sinta uma forte responsabilidade enquanto humano a reagir e falar abertamente sobre a desigualdade crescente, a ganância corporativista, o nacionalismo de extrema direita, o extremismo, racismo e corrupção. Na minha vida diária, eu ajo sobre estas responsabilidades ao participar em atividades comunitárias, tentando juntar o nosso bairro para abraçar a nossa maravilhosa diversidade. Ainda assim eu escolho abordar tendências mais longas, porque sinto que são pouco representadas: o crescente impacto negativo da raça humana no nosso planeta, a degradação ambiental, a extinção, as forças desumanas da tecnologia, a necessidade de recuperar a personalização face à virtualização. Para abordar estas questões mais longas, sinto que posso fazer mais (pessoalmente) ao tentar transmitir um sentido de espanto e pertença, de mistério e temor, com o objetivo de oferecer um melhor centro de gravidade pelo qual agir diariamente. Outras pessoas são provavelmente mais adequadas para fazer arte reacionária do que eu. Por favor note que eu não estou a tentar fazer arte que acalme ou anestesie as nossas perceções quanto aos erros no mundo, simplesmente porque é mais introvertida. Pelo contrário, eu procuro sensibilizar-nos ao grão fino da nossa existência. Eu encontro, em contraste, que este mundo de ruído crescente, raiva, alarme, ameaça e pavor tende a anestesiar e a entorpecer-nos. A arte que tenta juntar raiva com raiva, medo com medo, apenas contribui ao entorpecimento. Nós desligamo-la. Há demasiados gritos. Não podemos resolver estes problemas ao tornar-nos o problema, temos de resolvê-los com uma alternativa que aperfeiçoe a nossa sensibilidade e que nos ajude a encontrar um alicerce sólido, bem dentro de nós.


MP: Tem um novo álbum chamado The Biode, que pessoalmente adorei, e que na minha opinião soa muito fluido, corpóreo, mas sobretudo rítmico, quase um contraste com algum do seu trabalho que é muito etéreo. Esta sensação foi algo planeado e representa uma mudança de direção na sua musica?

RR: Em particular eu queria que o The Biode tivesse uma energia psicoativa mais intensa, que transmitisse o tema da consciência como um sistema que permeia toda a vida. O The Biode começou como uma espécie de sequela do Bestiary (álbum de 2001) com aquela linguagem extrema, biomórfica e analógica; ainda assim evoluiu para um híbrido com ritmos eletroacústicos sincopados. Se investigar mais os meus lançamentos, irá encontrar uma variedade de expressões, muitas delas bastante rítmicas mas de formas complexas e sincopadas. Álbuns como Propagation, Seven Veils, Ylang ou Medicine Box têm um ritmo mais eletroacústico, uma linguagem musical mais universal. Outros lançamentos tais como o Electric Ladder ou Filaments têm um vocabulário mais simétrico e cintilante. The Biode mistura um pouco destes elementos e parece soar novo de alguma forma. Talvez por volta de metade da minha produção seja mais sonhadora e etérea e a outra metade mais ativa tal como estes álbuns.

   

MP: Apesar de este álbum soar meio corpóreo, eu penso que é também muito consciente e, no meu ponto de vista, uma afirmação que tudo no mundo é composto pela mesma matéria e tem o seu próprio “biode”, quase como se houvesse uma consciência universal. Era isto que estava a tentar transmitir com este trabalho, e se era, esta conceção holística é algo em que acredita?

RR: De facto, nas notas de texto do álbum lêem-se exatamente essas mesmas ideias, explicitamente. Na verdade, eu inventei a palavra “biode” para descrever esta ideia de um nódulo de consciência que reside dentro das interações de várias espécies, trabalhando juntas como um sistema. Os cientistas estão constantemente a abordar estas metáforas de sistemas para descrever a realidade e nós estamos a começar a ver como é que uma floresta comunica entre árvores com a rede micorrizal de fungos e organismos relacionados, como qualquer organismo complexo é, na verdade, uma matriz organizada de diferentes milhares de micro-organismos. Nesta década, estudos médicos estão a mostrar como as nossas bactérias intestinais afetam a química do cérebro. Esta é a ciência mais desenvolvida de momento, e penso que irá parecer comum daqui a 50 anos.


MP: Só para terminar, que música está a ouvir de momento?

RR: Visto que estou a praticar para o sleep concert, de momento estou a ouvir bastante da minha performance para me relembrar para que som preciso de ir. Também ouço o mundo à minha volta, o ambiente, tentando sempre sensibilizar-me para os pequenos sons. Senão, ouço todos os géneros de música, mas normalmente não muito como pano de fundo. Gosto de ouvir música com alguma atenção. Raramente ouço música que se encaixa no meu território sonoro já que me soa demasiado familiar para poder apreciar. Gosto de escrita de canções boa e inteligente. Gosto de ouvir Elbow, Daughter, Radiohead, Emiliana Torrini, Little Dragon, Massive Attack, The Books, uma enorme variedade de música invulgar. Mais que tudo acabo por ouvir certos mestres do jazz tais como Coltrane, McCoy Tyner, Bill Evans, Miles Davis…ou música clássica do norte da Índia de artistas como Hariprasad Chaurasia, Shivkumar Sharma, Debashis Bhattacharya, Ali Akbar Khan…e música de outras partes do mundo. Tenho gostos ecléticos.

Robert Rich, 2017


(continuação...)Semelhanças.

Tanto em Rich quanto em Hayman podemos obseravar uma componente xamânica e espiritual da música particular, nomeadamente, em rituais ancestrais, e talvez seja isso que faz das suas músicas algo tão único e especial: envolvem uma espécie de transcendência do som, uma viagem de descoberta sobre nós mesmos, por meio dos sonhos e sensações, por mais pretensioso que isto possa soar, porque apesar de a ouvirmos a dormir, o controle incomum da consciência e dos sonhos que esta música nos é capaz de provocar permite afirmar que existem poucas artes que sejam capazes de nos modificar tanto quanto a sleep music.

Além disso, não é correto, no meu ponto de vista, ver os sleep concerts como um concerto, mas sim um happening, um ritual xamânico adaptado à sociedade moderna, tanto que o seu formato pode chocar ainda algumas pessoas pelo absurdo (que não concordo) que estes “concertos” possam representar (afinal se estamos a dormir como é que ouvimos a música?).

A sleep music, aliada ainda ao minimalismo, acaba por representar muito mais uma atitude perante a vida, de calma contemplativa, e sobretudo de consciência de nós e do mundo, indo ao encontro de ideias Zen ou budistas. Porém, não a poderemos apelidar New Age: a sleep music tem um significado muitos mais cientifico, e portanto factual, nas áreas do sono e consciência, não se focando apenas em crenças e num ativismo social e espiritual. 

Sleep concert de Robert Rich, no Moogfest em 2016.

De qualquer maneira o que é certo é que grande parte desta música não é apreciada ou sequer conhecida, até porque grande parte da música experimental, hoje em dia e pela sua inacessibilidade (inacessibilidade? Ou incapacidade de incompreensão dos ouvintes? Ou a precária educação musical num nível básico?) só consegue vencer através do extremismo sónico ou duma mensagem social relevante e pertinente, que possa transmitir. Porém, a sleep music conseguiu reerguer-se, levando outro rumo, bastante díspare, em tempos recentes, mais propriamente em 2015 com Max Richter.


A regeneração de Richter.

Nesta altura, Hayman já nem se encontrava em atividade, focando-se apenas na sua carreira naútica (já vai chegando a capitão marinho, vejam bem) enquanto Rich apesar de continuar a compor (algo exaustivamente até), realizava sleep concerts muito esporadicamente.

Em Sleep, álbum de Max Richter vemos o afastamento da sleep music de um género mais avant-garde, para uma abordagem mais clássica, erudita e sobretudo acessível. O álbum, em termos de duração à semelhança de Somnium, prolonga-se em mais de 8 horas (é considerado o maior álbum alguma vez gravado), e apesar de algo hipnotizante, a presença da melodia não o favorece, tornando-o por vezes cansativo. Porém, Richter, enquanto um dos compositores clássicos mais prestigiados da sua época, conseguiu gentrificar o género, apresentando-o ao ouvinte comum. E com esta abordagem mais comum, não se pense que os sleep concerts deixaram de acontecer pelas mãos de Richter, na verdade este até conseguiu realizá-los em salas como a Sydney Opera House e inclusive, trouxe o género à BBC 3, onde tocou Sleep em direto durante uma noite inteira. Além disso, o disco acabou por vender mais de 100 000 cópias, somando vitórias atrás de vitórias.


Para Richter, Sleep trata-se de uma balada para um mundo frenético, tentando justificar a composição, de uma musica para dormir ou acalmar com uma componente mais social e sobretudo global.

Porém (e para mostrar como está tudo interligado), o Sleep de Richter foi altamente inspirado nas Variações de Goldberg, tanto na estrutura do álbum com mais de 30 sequencias, como na própria lenda que Max pegou para dar contexto ao seu álbum: “É uma boa história, embora provavelmente seja apócrifa. Mas pouco me importa se é verdadeira ou não. O que me interessa é a escolha por Bach da forma variação: tomar diferentes caminhos através de uma paisagem conhecida.”

Apesar de uma declaração algo contraditória, já que o álbum não varia muito, podemos usar a última frase em jeito de conclusão. Max Richter conseguiu abordar um género ambicioso, pouco trabalhado, pouco conhecido e sobretudo não linear em termos de história, de uma forma universalmente (re)conhecida. Pode ser que lhe tenha dado vida, e que a sleep music, enquanto género, venha finalmente para ficar.


Em Portugal.

No nosso país, a sleep music é praticamente inexistente. Houve apenas um concerto, em 2014, realizado na casa de Serralves por Adam Basanta e Christoph Heemann, dois compositores experimentais, e artistas deste género no nosso país não existem nenhuns. Poderia apontar, se estivesse muito obcecado, Rafael Toral, pelos seus drones e a abordagem algo zen à musica, principalmente em "Violence of Discovery and Calm of Acceptance" ou "Sound Mind Sound Body" ou ainda Yan Gant-y-tan pelo seu som dum indie extremamente meditativo. 

Sleep concert na Casa de Serralves em 2014.

Todavia, esta inexistência é compreensível. Digamos que a sleep music ainda não é um género verdadeiramente solidificado, apesar de algo antigo, está ainda a dar os primeiros passos. Se o futuro será dela ou não, nem deve ser uma questão dada a quantidade de música existente hoje em dia e a inacessibilidade que esta representa. Poderá ser sim um objeto de fascínio, tal como o que originou este artigo. Ou até pode ser que as pessoas tenham um desejo súbito de acalmia. Quais sejam as hipóteses, espero que no futuro este género se possa verdadeiramente afirmar.



(E agora, só para acabar e vender um bocado do meu peixe, podemos dizer que este artigo metaforizou de alguma maneira o que quero fazer com esta rubrica: debruçar-me sobre um assunto menos conhecido e desenvolvê-lo minimamente, sem pressas nem pressões e esperando que pelo menos alguém o tenha lido até ao fim.)